A participação consumida
Se trabalhos como o de Lygia Clark ou de Hélio Oiticica visavam, com a noção de participação, a tomada de consciência e a redescoberta do corpo pelo sujeito, alguns de seus contemporâneos – como já havia notado Guy Brett, em 1969 – puseram a participação do espectador friamente em prática. Em texto para a exposição de Oiticica, na Whitechapel Gallery, em Londres, o crítico inglês alertava para as relações puramente mecânicas entre um receptor passivo e obras com efeitos pré-concebidos.
Um exemplo dessa participação fria, sem o dado imprevisível, foi recentemente exposto na interessante Vídeo-Instalação na Alemanha: 1963-1990, no Paço das Artes, em São Paulo. Composta por um sensor que detectava o movimento do espectador, A Estrada Real de Jeffrey Shaw, apresentada na exposição, compreende a participação pela mediação de meios eletrônicos que prevêem as possibilidades de ação do sujeito. Quando nos aproximamos de um monitor colocado no final de um caminho construído com luzes, imagens se ampliam, surgem de dentro de outras e perdem definição, como se estivéssemos entrando em seu interior. Ao nos afastarmos do monitor, respondendo à nossa ação, a imagem é reduzida e se move em sentido inverso.
Em trabalhos como esse, pouco importa a contribuição de cada participador, pois a obra se apresenta totalmente constituída e acabada, sem abertura para que o espectador a complete. Essa participação, por não ter justamente a dimensão humana e imprevista como central, se esgota e é facilmente transformada em produto. A liberdade de participar, principalmente quando apropriada e propagandeada por alguns programas de televisão, é transformada em liberdade de consumir. Combatendo a suposta passividade do espectador, desejos e vontades são construídos, como se pudessem ser reduzidos e enquadrados em alternativas previamente selecionadas.
É recorrente o entendimento da participação como atividade em oposição a passividade da contemplação. Entretanto, essa dicotomia parece insuficiente para o entendimento da participação do espectador. Atividade não implica em participação, assim como passividade não deve estar sempre associada à contemplação. Diante da fragmentação de um quadro do pintor cubista Georges Braque, por exemplo, é possível conceber que a atividade de quem contempla seja a de unificar a figura, estabelecendo uma compreensão entre os múltiplos sentidos que faz uma obra de arte escapar da determinação completa. Na atitude contemplativa, ao contrário da passividade da recepção, há atividade mesmo sem envolver participação. Sendo assim, como ocorre a participação do espectador na obra de arte? Nos Penetráveis ou Parangolés de Oiticica, por exemplo, há a entrada num ambiente ou capa em que a estrutura da obra é incorporada pelo sujeito. Os Bichos de Lygia Clark devem ser manipulados. Em Você faz Parte II, de Nelson Leirner, vemos nossa imagem refletida num espelho, o que de algum modo nos faria participar da obra.
Entre a variedade dos recursos tecnológicos, a participação na chamada Web art, se dá pela mediação de programas de computador. Sem qualquer pretensão em traçar uma hierarquia dos diversos modos de participação, trata-se de perceber como uma certa noção de participação, que se utiliza de meios eletrônicos, devido a própria natureza de seu mecanismo, pode transformar a experiência em algo completamente determinado. Esse modo de participação em nada colabora para a constituição de um sujeito livre e emancipado que poderia intervir na sua realidade, ao contrário, deixa que a experiência da participação seja rapidamente consumida. Entretanto, para não cairmos numa crítica vazia aos meios tecnológicos, teríamos que analisar cada obra.
Diversos trabalhos levantaram a discussão sobre o significado da participação e ofereceram algumas respostas para a questão. Nelson Leirner, nos anos 60 e 70, realizou uma série de experimentos que ironizavam os mecanismos massificadores da sociedade de consumo que se valem de uma falsa liberdade do espectador. Além do famosa Exposição-Não-Exposição em 1967 em que obras chumbadas e presas por correntes puderam ser levadas de graça por quem conseguisse tirá-las da parede – Leirner publicou no Jornal da Tarde, em 1971, instruções de como multiplicar suas obras, permitindo que qualquer pessoa as fizesse. A participação do espectador que leva uma obra da galeria pela força ou a faz em casa, é uma emblemática crítica ao sistema de arte vigente e à sociedade de consumo. Recentemente, na última Bienal de São Paulo, Leirner colocou em caixas de acrílico, como numa vitrine, centenas de raquetes e bolinhas ao lado de uma mesa de ping-pong. Enquanto apenas ouvíamos o som de um jogo que não podemos participar, o artista parecia tirar um sarro do modo como a participação tem sido transformada em espetáculo. Trata-se de reconhecer que a participação do espectador, como resistência ao jogo do mercado, é melhor resolvida justamente quando se compreende a sua impossibilidade de realização completa.
Ana Teixeira, sem ignorar as relações comerciais e os meios tecnológicos que permeiam nossa vida, realizou algumas intervenções que também repensam a participação. Simultaneamente em Buenos Aires e São Paulo propôs, em novembro de 2001, a troca de desejos dos espectadores por maçãs. No dia dos namorados, instalou uma barraca de camelô nas ruas de São Paulo e vendeu diferentes definições de amor coletadas via e-mail. O procedimento de oferecer amor como mercadoria ironiza sua transformação em produto e escancara a perversidade do sistema. Por mais poéticas que sejam é possível perceber que as definições são incapazes de substituir o amor, o que proporciona ao consumidor mais uma experiência de insatisfação. Trabalhando num registro íntimo e privado, frente a complexidade do mundo, a artista mostra com lucidez que a participação foi incorporada pelo mercado, resultando na transformação da subjetividade em mais um objeto consumível.